As questões cercam a polêmica decisão de conceder o torneio de futebol ao Brasil, país com o segundo maior número de mortes de COVID no mundo.
As questões cercam a polêmica decisão de conceder o torneio de futebol ao Brasil, país com o segundo maior número de mortes de COVID no mundo.
Belo Horizonte, Brasil – É apropriado que o subutilizado estádio de futebol Estadio Mané Garrincha, em Brasília, fique quase à vista do gabinete do presidente brasileiro Jair Bolsonaro.
Em pouco mais de uma semana, a cavernosa arena receberá a partida de abertura da, sem dúvida, a mais controversa e politizada Copa América da história do torneio internacional de futebol mais antigo do mundo.
Se isso acontecerá, independentemente da obstinação de Bolsonaro, ainda está para ser visto.
Até o final do mês passado, o torneio de 10 equipes, com duração de um mês, seria, pela primeira vez, co-sediado por dois países: Colômbia e Argentina.
Os planos do primeiro foram cancelados em 20 de maio devido a distúrbios civis. Dez dias depois, com os casos de COVID na Argentina tendo aumentado 54 por cento, o país trocou seus direitos de hospedagem pelo indesejável título de ter o quinto pior surto de coronavírus per capita do mundo.
Em 24 horas, o Brasil devastado pela COVID foi revelado como a solução de emergência.
Alejandro Dominguez, presidente da CONMEBOL – órgão regulador do futebol da América do Sul – escreveu no Twitter: “Está chegando um torneio que fará vibrar o continente”. Ele não estava errado.
A realidade, assim como COVID-19, é difícil de abalar: o torneio de 105 anos foi trocado da Colômbia e da Argentina por causa da agitação política e do coronavírus, mas foi transferido para um país politicamente fraturado com o segundo pior número de mortes em o mundo e sem fim à vista.
Até 5 de junho, o Brasil notificou pouco menos de 17 milhões de casos de coronavírus, o terceiro maior no mundo, e mais de 470.000 mortes, atrás apenas dos Estados Unidos.
Apenas 10 por cento da população foi totalmente vacinada e um dia após a confirmação do Brasil como anfitrião, registrou 94.509 novos casos, o segundo maior número já registrado no país.
A decisão de sediar o torneio gerou uma explosão de críticas em toda a América do Sul. Jogadores de futebol, políticos, especialistas em saúde, advogados e fãs expressaram descrença com a ideia de sediar o torneio em um país que tem lutado constantemente para controlar o vírus.
A federação de futebol do Brasil ainda não fez uma declaração e não respondeu ao pedido de comentários da Al Jazeera. Mas a Seleção Brasileira é contra a ideia de ter o torneio em casa.
Na sexta-feira, após a vitória da equipe sobre o Equador, o capitão Casemiro sugeriu que os jogadores não queriam participar do torneio devido à situação do COVID no país.
“Não podemos falar sobre o assunto [mas] todos sabem qual é a nossa posição em relação à Copa América”, disse Casemiro. “É impossível ser mais claro. Queremos expressar nossa opinião depois do jogo contra o Paraguai.”
Estrelas de destaque como o argentino Sergio Aguero e o uruguaio Luis Suarez também expressaram preocupação, enquanto a seleção chilena também está considerando um boicote com o técnico Martin Lasarte, dizendo que jogar no Brasil é um “risco gigantesco”.
Logo após o tweet de Dominguez, memes de mascotes e logotipos simulados com caixões e a molécula do vírus circularam online.
Usando as palavras em português para “variante” e “túmulo”, os brasileiros rebatizaram o torneio Cepa América e Cova América.
“Todos os dias, mais de 2.000 pessoas morrem no Brasil por causa desse vírus, mas já está acontecendo há muito tempo e é considerado completamente natural”, Dr. Jamal Suleiman, especialista em doenças infecciosas do Hospital Emilio Ribas em São Paulo, disse à Al Jazeera.
“É sem fim. É como se 10 grandes aviões de passageiros batessem todos os dias durante meses. Nenhum outro país do mundo é assim.”
A América do Sul abriga mais da metade dos 15 países com a maior incidência de casos de COVID em sete dias em todo o mundo.
Ainda assim, com $100 milhões em direitos de televisão já vendidos, a CONMEBOL se recusa a adiar sua competição oficial pelo segundo ano consecutivo.
Sem torcedores dentro do estádio, o Brasil deve levantar a cortina contra a Venezuela no dia 13 de junho, antes que outros jogos sejam disputados em Cuiabá, Goiânia e Rio de Janeiro.
Um estudo do jornal O Globo do Brasil descobriu que cada uma das quatro cidades-sede tem menos de 20 por cento dos leitos de UTI disponíveis.
“Organizar a Copa América passa a mensagem de que a pandemia está sob controle”, acrescentou Suleiman.
“Isso não pode ser subestimado e é exatamente o que Bolsonaro vem tentando fazer desde o início, dizendo que é apenas uma‘ gripezinha ’e uma‘ coisa de marica ’. O futebol não é um lugar associado a maricas, é visto como um esporte machista. Portanto, a mensagem que está sendo transmitida ao sediar o evento corre o risco de piorar a saúde pública consideravelmente.”
Em um contexto sem COVID, a decisão de emergência pode parecer lógica.
Nos últimos sete anos, o Brasil sediou a Copa do Mundo de futebol, Olimpíadas, Copa do Mundo Sub-17 e a Copa América 2019. O país, sem dúvida, possui a melhor infraestrutura da região para receber um grande evento esportivo.
“Sou contra a Copa América que está sendo realizada este ano porque está perdendo prestígio, mas se quisermos, o Brasil é uma boa opção”, disse Lucas Assis, estudante carioca de 21 anos. Janeiro.
“Nossas ligas nacionais estão acontecendo e outros times da América do Sul disputaram jogos da Libertadores aqui na semana passada, então não vejo diferença. A grande mídia é totalmente contra a Copa América, mas eles não têm nenhum problema em transmitir o futebol nacional, por isso parece hipócrita e político. Para mim, toda essa indignação tem mais a ver com os direitos da TV do que com a morte de pessoas”.
A CONMEBOL argumenta que com 50.000 vacinas fornecidas pelo fabricante chinês Sinovac, ela pode vacinar todas as delegações de equipes antes do início do torneio.
No entanto, o tempo não depende dos organizadores. É recomendado um período de três semanas entre as duas doses. Suleiman chama a lógica de “completamente falha”, observando também os perigos que representam para trabalhadores periféricos desprotegidos, como ballboys, motoristas de ônibus e funcionários de hotéis.
“É uma loucura”, disse Monica Sapucaia Machado, professora do Instituto Brasileiro de Direito Público de Brasília. “Dizem que vão vacinar os viajantes, mas e as pessoas que trabalham nos aeroportos, hotéis, restaurantes? Esperamos que os jogadores fiquem em seus hotéis por um mês? É ridículo.”
Na semana passada, David Neres, do Ajax, e Robert Arboleda, de São Paulo, foram presos em uma festa clandestina com mais de 100 participantes. Esses eventos secretos são um tema comum no Brasil, onde cada governador de estado estabelece suas próprias regras.
“A pandemia está completamente fora de controle aqui”, disse Suleiman. “Os hospitais públicos estão lotados, os hospitais privados estão lotados, todos estão trabalhando na sua capacidade máxima. Os medicamentos para pacientes entubados em São Paulo vão acabar no máximo na próxima semana, sem previsão de reabastecimento. Não é uma situação confortável.
“O futebol é um grande esporte, um jogo emocionante, mas o país não precisa da Copa América neste momento. O que o país precisa é de uma vacina”.
A polêmica decisão chegou menos de uma semana depois que dezenas de milhares de manifestantes encheram as ruas de 200 cidades brasileiras pedindo o impeachment de Bolsonaro.
O presidente rotineiramente minimiza a gravidade do coronavírus, se opõe aos bloqueios e questiona a eficácia das vacinações.
Na noite de quarta-feira, Bolsonaro confirmou que o torneio será realizado no Brasil e disse que o mesmo protocolo das eliminatórias da Copa Libertadores e da Copa do Mundo será seguido.
Mesmo assim, políticos da oposição já procuraram o Supremo Tribunal Federal com a intenção de suspender o torneio por motivos de saúde pública.
O líder do Partido Socialista Brasileiro Carlos Siqueira chamou isso de um “projeto de morte”, enquanto o senador Renan Calheiros pediu ao astro brasileiro Neymar Jr para tomar uma posição. Ações judiciais foram movidas em vários estados do país.
O professor Machado disse à Al Jazeera que a decisão de Bolsonaro de dar luz verde ao torneio é provavelmente uma “tática de diversão” e “um meio de desviar a atenção” em um momento em que a gestão da pandemia por ele e seu governo é objeto de muitas críticas em um inquérito parlamentar.
Acrescentando que algumas ações judiciais podem ter resultados, ela acredita ser improvável que sejam suficientes para forçar a suspensão.
“O problema que temos no Brasil agora é que não temos controle”, disse Machado. “Pareceres jurídicos e técnicos, coisas estudadas há gerações e baseadas em evidências, não estão sendo utilizadas para tomar decisões importantes. Eu entendo que o futebol para o Brasil é um negócio muito importante, mas não vejo como isso seja uma jogada inteligente de qualquer perspectiva, mesmo economicamente.
“Desculpe a expressão, mas qual é o objetivo aqui?”
FONTE: AL JAZEERA